O fogo de Monchique está controlado, embora com um ou outro reacendimento prontamente debelado pelos bombeiros ainda presentes no terreno. Os cafés e os restaurantes reabriram as portas, as pessoas voltaram aos seus hábitos antigos e tudo parece estar em ordem. Mas não está! De rosto fechado, muitas pessoas não querem falar sobre o que perderam, «porque é sempre o pequeno quem se lixa». Cheira-se o medo que pensávamos ter terminado há 44 anos. Sente-se, nas meias-palavras ditas a medo, um misto de raiva, resignação e desespero. Por vezes, uma falta de vontade de continuar a viver.
Pouco a pouco, alguns monchiquenses foram-se abrindo, mas o pedido «não escreva isto» sempre presente. O sentimento geral é de que quem comandava estava longe e sem conhecimento específico do que estava a acontecer; quem estava no terreno obedecia cegamente. Muitos também se queixam do modo como a GNR procedeu às evacuações, não distinguindo as pessoas com mobilidade reduzida dos que podiam – e, em muitos casos, possuíam os meios e o conhecimento – ajudar a controlar o fogo e a salvar bens. Por outro lado, todos os populares com quem falámos louvavam a ação do Grupo de Intervenção de Proteção e Socorro (GIPS) da GNR, «incansáveis e audazes».
30 anos sem tirar cortiça
José Nunes é um homem que vive do que a serra dá. Um dos grandes produtores de medronho, também se dedica à cortiça e à madeira. Primeiro, não queria falar. Mas aos poucos foi-se abrindo e soltando as suas mágoas. «Tinha cortiça guardada e outra no mato. Perdi a última, à volta de 2000 arrobas. E só não perdi a outra, porque fiquei lá. Perdi a minha e a que extraía de outros proprietários. A minha, havia 15 anos que não tirava nenhuma por causa do fogo de 2003. Era o primeiro ano que ia apanhar. Agora, tenho de esperar outros 15 anos. Temos de tirar a queimada, ao fim de três ou quatro anos, e a partir daí contar mais dez. Está a ver? Trinta anos sem extrair cortiça, se entretanto não houver outro fogo». Também a ele tentaram evacuá-lo. Tinha água e quatro homens a ajudá-lo. Ainda assim, perdeu os medronheiros, com uma produção estimada em mais de 500 litros de aguardente anuais. «Só vão dar fruto daqui por três anos e têm de ser preparados. Quando começar a chover, tenho de cortá-los, para rebentarem». Questionado sobre se o fogo tinha seguido o mesmo padrão de 2003, como se diz à boca-cheia, responde que não. «Foi muito diferente. Este ano, ardeu completamente em zonas onde o fogo não chegou há 15 anos. Por exemplo, à volta da vila. Nos primeiros dois dias, não conseguiram apagá-lo. No terceiro dia, levantou-se o vento e nunca mais deram conta dele. Só usaram as máquinas de rasto no primeiro dia e depois pararam. Só voltaram a usá-las no final».
Sobre a ação dos bombeiros, José Nunes considera que «este ano, os homens de fora chegavam e ficavam por aí aos montões, sem ordens da Proteção Civil para apagar. Se vinham de outras zonas do país, conheciam algum caminho, alguma coisa? E não havia ninguém que lhes dissesse nada! Os Bombeiros de Monchique não tinham ordens para levar ninguém. Eu não sei o que eles faziam. Deveriam ter dividido os bombeiros de Monchique por zonas, para coordenarem as outras equipas, e foi isso que não fizeram, porque não tinham autorização».
Proprietários salvam Parque da Mina
O Parque da Mina é uma atração turística de Monchique, misto de parque de diversões, vida animal, museu e serviço de restauração vocacionado para acolher todo o tipo de festas.
Ao aperceberem-se de que o fogo se aproximava, no domingo à tarde (5 de agosto), os responsáveis correram para o local, confiados no sistema de prevenção e combate a incêndios que têm instalado. Mal chegaram, ligaram o sistema e começaram a molhar as zonas à volta da propriedade, como medida preventiva, até que chegou a GNR e obrigou-os a sair. Regressaram e encontraram o fogo junto à vedação, do lado de fora. Mas insistem que só desobedeceram e voltaram, porque sabiam que tinham uma proteção que lhes permitia operar em segurança.
«A GNR regressou para nos retirar à força. Nessa altura, verificaram que tinham de nos ajudar. Esses elementos, que não eram GIPS, mas parte da força territorial de Portimão, sem qualquer tipo de equipamento, combateram o fogo connosco e conseguimos impedir que entrasse no parque. Três horas depois, chegaram os bombeiros», diz David Leonardo. «Com as máquinas de rasto, abrimos uma zona de contenção no terreno do vizinho, porque o nosso estava limpo».
Em determinada altura, tiveram necessidade de um canalizador para reparar uma avaria no sistema anti-incêndio e, segundo Nuno Arez, «a GNR não o deixou passar. É uma coisa que não entendo. À noite, só após grande insistência é que o deixaram passar. Conseguimos reparar a avaria e manter o sistema operacional». A opinião dos responsáveis pelo parque é «se não estivéssemos cá, isto tinha ardido tudo. Mas também não teríamos sido capazes de o fazer, sem a ajuda dos bombeiros, máquinas de rasto e, acima de tudo, do GIPS. Porque conseguimos evitar que entrasse, mas não conseguíamos apagar».
Modelo de combate aos incêndios «tem de ser repensado»
Quem o diz é Mário David, vendedor de automóveis reformado, que se dedica à agricultura, tem cortiça, alguns eucaliptos, sendo presidente da Assembleia de Freguesia do Alferce, uma freguesia exemplar no que diz respeito à limpeza dos terrenos. «Todo este modelo de apagar incêndios tem de ser repensado. Antigamente, havia um fogo, chegavam os bombeiros de outras cidades e colocavam-se às ordens do comandante local, que os instruía. Agora, vem um tipo de Lisboa, Setúbal ou qualquer outro sítio mandar nisto tudo e não escuta ninguém. Sei que o incêndio esteve controlado, no sábado à tarde. Depois, deixaram-no fugir. Sabemos que as condições meteorológicas não eram as ideais, mas há coisas para as quais os responsáveis foram alertados e não fizeram caso. Os meios estavam cá! Não se percebe como aconteceu», sublinha. «Não me estou a lamentar do que me aconteceu, porque eu, felizmente, ainda tenho a minha reforma e consigo subsistir, enquanto há pessoas que agora não têm nada. O meu cunhado, por exemplo, ardeu-lhe a casa, uma retroescavadora, as laranjeiras todas. E agora, com mais de 60 anos, vai fazer o quê?», questiona. Mário David diz que não apareceu um único bombeiro em Alferce. «Apareceu apenas a GNR que, de forma desordenada, começou a mandar as pessoas embora de casa, agrediram e algemaram. Eu próprio fui insultado. Ofenderam a minha esposa, que é funcionária da Junta de Freguesia e que estava comigo, a pedido do presidente, a implementar o plano de emergência que temos. E queriam evacuar as pessoas para São Marcos da Serra, quando o fogo vinha daquela zona. Os bombeiros apareceram ao fim de quatro horas e meia».
Mário David acrescentou que teve de fazer frente à GNR, impedindo que as pessoas fossem evacuadas. Foram enviadas para o edifício da Junta e para o Pavilhão Multiusos. «Eu não culpo os agentes no local, que não eram de cá, não conheciam o terreno e estavam a cumprir ordens. Mas, quem deu as ordens? Nós tínhamos o nosso plano de evacuação, que funcionou. Podiam ter morrido 50 ou 60 pessoas, se tivessem cumprido as ordens da GNR. Só não houve mortes, porque desobedecemos às autoridades e tivemos sorte», garante.
Por fim, Mário David diz que é necessário apurar como começou o incêndio, que foi anunciado. É trabalho para a Polícia Judiciária. «Há que apurar responsabilidades criminais e não apenas as políticas. E não vamos diabolizar o eucalipto, porque ali era zona de mata de sobreiros e ardeu tudo» na mesma.
Sobre a limpeza das matas, David, tal como várias outras pessoas, aponta a falta de uma central de biomassa, de que se fala, há mais de 20 anos, para processamento dos resíduos, e que ainda hoje não existe.
Quinta dos Madeiros, Monchicão de Baixo (Alferce)
Passámos por lá uma semana antes da tragédia e estava verdejante. Agora, fomos encontrar tudo ardido, exceto uma pequena parcela, paredes-meias com a ribeira e a capela. «A quinta não ardeu porque estava limpa. O fogo passou, mas não tocou em nada. Fomos evacuados e os bombeiros estiveram aqui. O que ardeu foi o que não estava limpo, dos vizinhos, e acabou por pegar a alguns pedaços nossos», descreve José Guerreiro.
Arderam os tubos de rega, uma dúzia de árvores de fruto e a parte elétrica da bomba de água. «Uma árvore seca caiu e partiu um fio de telefone e, até hoje, ainda cá não vieram. Agora, com o fogo, a minha vizinhança também não tem», acrescentou ainda, pois está sem telefone, desde 24 de junho. Os telemóveis não funcionam no local. «Se houver algum problema, temos de ir a correr para o Bico do Morro, para apanhar rede, ou então para o Rasmalho», lamentou, apontando o dedo ao operador Altice.
Laranjeira «ardeu porque quiseram»
À beira da estrada, encontrámos o jovem Hélio Costa a olhar os estragos, com o ar abatido que quem não sabe o que fazer à sua vida. É apicultor, jardineiro, madeireiro e perdeu tudo. «Tinha 10 a 12 colmeias. Agora, necessito do mínimo de dois a três anos para ter as abelhas a produzir». Entretanto, chegou o pai, Américo Costa. «Só não perdi mais porque consegui tirar alguma coisa, pouca. E ninguém vai pagar nada, de certeza. Aqui nunca houve bombeiros. Só a GNR é que andou a correr com as pessoas daqui para fora. Não souberam fazer mais nada. Ardeu o que ardeu e, depois, mandaram-nos voltar. Quem não conhece é que manda. Houve bombeiros espalhados por aí, dias inteiros, sem fazer nada, porque não tinham ordens para fazer. Isso admite-se?».
Garagem arde junto a tanque de água
O advogado Fernando Medronho tem uma pequena propriedade, dos dois lados da estrada que liga a Nave a Casais (N267). Mostrou-nos uma garagem ardida, a três metros da estrada e com um tanque de água ao lado. «Havia bombeiros aqui a fazer vigilância àquelas casas. Deixaram arder a garagem e a casa do gado, do outro lado da estrada, a cerca de 30 metros», numa situação que se apagava com meia dúzia de baldes de água, que estava mesmo ao lado, questiona se este não será mais um exemplo da obediência «cega e estúpida» às ordens do comando?