Lugares como Alvor e Ferragudo, apesar da urbanidade de Portimão, dos cruzeiros e dos iates mantêm até hoje uma relação privilegiada entre a paisagem estuarina e o lugar urbano. Em parte porque se preservaram as formas de lá chegar, os caminhos, a ferrovia e o mar.
Lugares como Alvor e Ferragudo, apesar da urbanidade de Portimão, dos cruzeiros e dos iates mantêm até hoje uma relação privilegiada entre a paisagem estuarina e o lugar urbano. Em parte porque se preservaram as formas de lá chegar, os caminhos, a ferrovia e o mar.
No século XXI o delírio de uma cidade como Portimão, na procura de uma “segunda vida” entre o progresso e o turismo, fez chegar cruzeiros rio adentro, marinas ao estuário e marginais com promessas de urbanização. Em Alvor, a marginal inaugurada em 2001 trouxe pavilhões, restauração e asfalto para o espaço natural da Ria, lançando a ideia de um modelo a seguir para a Angrinha e Regato em Ferragudo.
Hoje, o receio de que um qualquer cruzeiro ali encalhe mobilizou surfistas, arquitetos e presidentes de ‘junta’ para que o ‘Rio de Portimão’ não se afunde nem se alargue. No entanto, as encostas e cerros nas margens do ‘Rio’ e da ‘Ria’ continuam a crescer.
A relação entre a paisagem e o lugar tem um duplo significado que pode ser resumido da seguinte forma: o lugar vê a paisagem e é, ao mesmo tempo, visto a partir da paisagem.
As Igrejas Matriz de ambos os lugares explicam esta condição: por um lado, ambas as igrejas a partir do adro controlam um sistema de vistas que inclui: a sul o mar e a norte o perfil montanhoso da Serra de Monchique; por outro lado, dominam uma hierarquia de escalas para quem se aproxima de barco ou por terra, definindo-se contra os restantes edifícios, o rio e os contornos da paisagem que o rodeiam.
A importância do caminho com que construímos estas paisagens é fundamental, ou seja, dependendo do meio que é utilizado para nos deslocarmos (pedonal, bicicleta, barco, comboio, automóvel, etc.) construímos diferentes visões destas relações e com elas diferentes paisagens.
Alvo de projetos em período de auscultação pública (Loteamento ATR1 Foz do Arade) a ‘estrada da Rocha’, entre a cidade e a praia, foi durante séculos, um destes caminhos que mostrava em Portimão o Colégio dos Jesuítas como grande elemento dominador da hierarquia de escalas da cidade.
Hierarquia que hoje se tronou difusa e até perturbadora, seja pela estrada, pelo rio, de comboio ou mesmo pelo ar.
A conhecida aguarela de Joseph Constantine Stadler , que retrata entrada no porto de Vila Nova de Portimão por mar há mais de 200 anos, mostra-nos a dita ‘estrada da Rocha’ como poucos se recordam, uma marginal na orla costeira.
No início do século XIX os desafios que se colocavam ao rio Arade com as inúmeras inundações e à navegabilidade marítima e circulação em terra dominavam, tal como hoje, a agenda local.
O levantamento de Silva Lopes da denominada barra de V. N. de Portimão na Corografia, revelava as crescentes preocupações com o assoreamento do porto e permeabilidade a tempestades e inundações.
Desta condição resultaram inúmeras discussões e reclamações em sede Parlamentar que culminaram no anuncio de obras em 1862. Inicia-se então uma dinâmica de intervenção humana na bacia do rio Arade que origina a construção da primeira travessia rodoviária sobre o rio em 1876.
A inauguração da primeira estação ferroviária junto do estuário em 1903 no sitio do Parchal inaugura no século XX uma grande atividade conserveira, com fabricas ao longo das estradas da Praia Rocha e de Ferragudo. No trajeto da primeira, surge em a fábrica de S. Francisco ou Estremal, o complexo da família Feu de Ayamonte (atual Museu de Portimão) e mais tarde a fábrica Facho limitada que hoje serve de nome a restaurante de um hotel no local.
Em 1916, o Plano hidrográfico do porto e barra de Portimão apresenta a muralha do porto comercial na margem poente do rio, a ponte rodoviária, as estradas de Ferragudo e da Rocha, e as fábricas de conservas de uma lado e do outro. A grande fábrica de S. Francisco (20,000m2) surge em posição dominante na area que hoje se pretende urbanizar entre a ‘Estrada da Rocha’ e o terminal de cruzeiros. Neste plano identificam-se ainda extensos campos agrícolas numa area de 26.4Ha a sul da fábrica, que foi campo de golfe e que muitos ainda chamam de ‘mata da Rocha’ ou ‘tapada do Lucas’ hoje um eucaliptal e estacionamento e onde incide o Loteamento ATR1 Foz do Arade.
Da concentração de fábricas junto do convento de S.Francisco resulta a construção de um pequeno bairro operário sob comprido e disposto em ambos os lados da ‘estrada da Rocha’, e na base da falésia costeira (visível no excerto do Plano de 1916).
O bairro com 21 unidades de 40m2 para 8 pessoas e com 4 compartimentos foi durante décadas conhecido como o ‘comboio parado’ ou “arranha céus deitado”. O conjunto do bairro com 41 janelas, a fábrica e os estaleiros do Estremal, ganham condição de lugar e em 1944 com a fundação do Lusitano Atlético Clube Estremalense (LACE).
Helder Faustino Raimundo em artigo recente para “A Voz de Loulé”, descreve que os habitantes do ‘comboio parado’ eram provenientes das orlas camponesas da cidade, mas também de diversos pontos do país, como a região saloia de Lisboa, ou a costa litoral de Peniche a Espinho.
Faustino Raimundo refere que durante os anos 1960 o clube LACE atraia jogadores estrangeiros para a equipa de futebol que jogava de vermelho com lista cruzada em amarelo. Nuno Campos Inácio refere em outro artigo o nascimento do turismo em Portimão ao longo da ‘estrada da Rocha’, onde operários fabris se misturavam com os turistas.
Uma fotografia aérea de 1958 confirma a consolidação de um imenso campo entre o conjunto do Estremal e as dunas da Ponta da Areia, hoje terreiro ate aos limites do terminal de cruzeiros e do ponto de apoio naval da Marinha, resultante do impacto da construção dos molhes da barra do Rio Arade (1956), com pedra extraída da Ponta de Almádena. A imensa Praia da Ponta da Areia, de frente para a Angrinha, oferecia uma alternativa balnear aos jovens de Portimão. Por esta altura as dunas, lagoas, mata e um golfe improvisado conferiram um universo naturalista a este território.
Com o encerramento das fábricas em 1974, o conjunto do Estremal foi parcialmente abandonado, inclusive o convento de S.Francisco já muito degradado depois de servir de armazém para equipamento conserveiro durante décadas.
Pouco depois as dragagens no rio intensificam-se na expectativa de contrariar o decréscimo de atividade industrial no estuário e consequente processo de naturalização do estuário.
Uma fotografia aérea de 1978 ilustra o impacto das dragagens no rio em curso que dariam lugar à construção do terminal de cruzeiros, cais da Marinha e mais tarde à Marina de Portimão, alterando em definitivo as características da margem poente do rio.
Durante este período iniciaram-se os primeiros movimentos ambientalistas (O Verde) que reclamavam a preservação do sistema dunar, da ‘mata da Rocha’ e o impacto do deposito de areias e lamas resultante das dragagens. Junto do complexo Feu, a construção do conjunto conhecido por “H’s” acabou por interromper relação com a cidade que se percebe na aguarela de Joseph C. Stadler quebrando uma relação secular entre paisagem e cidade.
Durante a década de 1980 para alem da construção de «arranha-céus em pé», como os ‘H’s’, consolidaram-se aterros e ergueram-se montes de areia sob o sapal do ‘Frito Velho’ na margem de Ferragudo.
Em 1995, após a classificação como imóvel de Interesse Público do convento de São Francisco e aquando da elaboração dos primeiros Planos Director Municipal (PDM) para os concelhos de Portimão e Lagoa, na bacia hidrografia da barra do rio Arade a preservação das relações entre paisagem e lugares como Ferragudo já se entendia como a prioridade.
No entanto este instrumento de ordenamento do território lançou princípios de planeamento urbano, a nascente a UP1 que hoje contrai golfe e urbanizações em Ferragudo, e a poente a unidade de planeamento UP5 que proporcionou, entre outras, a demolição do ‘arranha céus deitado’ da “estrada da Rocha’.
A própria ‘estrada’ passou no Plano a mais uma ‘via-rápida’ de Portimão (V4) e a construção sob o Alto da Boavista (antiga falésia da orla) começava em 2000 com ruas denominadas de oceanos que escondiam o moderno reservatório de água, em tempos o único elemento ‘em pé’ entre o convento e o Jupiter (hotel da Rocha).
Recentemente um outro Jupiter, o da ‘encosta da marina’, já depois de inaugurado o museu da conserva (museu municipal) esteve na origem da demolição inesperada da fábrica Facho, enquanto a dita ‘estrada da Rocha’ continuou como tal.
Em 2017, o município, que entretanto também transferira os seus serviços de urbanismo e ordenamento para a ‘encosta da marina’, anunciava finalmente a melhoria da ‘estrada’, agora com passeios de jogging e ciclovia no âmbito de um programa com símbolo cardinal (#RepavimentarPortimão) para ligar os dois hotéis, o Jupiter Marina ao Rocha.
Nas redes sociais pediu-se a ‘avenida’ (V4) e alguém referia “que não se compreende que uma estrada num dos pontos mais turísticos de Portugal sempre tenha estado ao nível de uma ‘estradola’ de Trás-os-Montes, daquelas que liga uma aldeia a outra!
Aliás, deveria haver uma declaração para expropriação de terrenos [os do bairro operário do Estremal], para aumentar a estrada em mais 4 ou 5 metros de largura [a profundidade das antigas casas do bairro], para a dignificar minimamente.”
Finalmente será a paisagem de ‘via-rápidas’ e ‘arranha céus’ que os Portimonense procuraram durante todos estes anos? Uma vez convertida a ‘estrada da Rocha’ em ‘via-rápida’ o que vai ser do Estremal e da «mata da Rocha»? Continuar-se-á a encosta que em tempos foi falésia, agora com mais ruas, travessas e pracetas dos Oceanos, ou será a mata convertida em ‘quinta’?
O projeto do Loteamento ATR1 Foz do Arade, agora em sede de discussão publica do seu Estudo de Impacto Ambiental afigurasse como uma primeira resposta a todas estas perguntas.
Nos últimos anos, tal como a hierarquia na paisagem de Portimão, tem sido contraditória a agenda local, colocando duvidas a todos quanto ao futuro do ‘convento’, ‘estrada’, do Estremal e da ‘mata’.
Depois dos últimos incêndios de Monchique (2018) a operação «Montanha Verde» plantou 1260 pinheiros e cipreste no ponto de apoio naval da Marinha.
No verão seguinte, um grupo privado anunciou investimento de 20 milhões de euros e lançou concurso de ideais para uma operação de loteamento turístico/residencial(ATR1) na ‘mata’ que segundo relatório do Plano de Urbanização (PU) da UP5 é uma zona com risco de inundação.
A proposta vencedora propõe para os 26,4Ha o aproveitamento da linha de agua reminiscente convertida em corredor verde ou parque urbano entre o beco nascente da rua Cabo da Boa Esperança e a Marina.
Neste extremo para o rio deverá surgir uma grande praça e um imaginário próximo da zona da Expo em Lisboa junto à doca dos Olivais.
Ao centro parque um lago que serve para recolher as águas mas também de elemento que articula a intersecção com outro corredor que num eixo sul-norte estrutura uma outro loteamento, o da fábrica São Franciso, preservando um eixo visual da ‘mata’ para o ‘Convento’.
Em ambas as propostas sugere-se um pouco de tudo, residências seniores, residências partilhadas de uso temporário, residências para jovens com comercio e hotelaria. Com uma área de construção total próxima dos 200 mil m2 e um máximo de 3 pisos, esperam-se 5000 novos residentes no Estremal onde outrora viviam cerca de 200.
Os 40m2 onde no passado habitaram 8 pessoas são agora a referencia para cada novo habitante.
O futuro da foz do Rio Arade está hoje suspenso pela expectativa dos comboios e cruzeiros que poderão ‘andar’ e trazer os milhares de turistas para os quais se preparam projectos como os novos loteamentos no Estremal e as marinas e marginais em Ferragudo.