O mar guarda muito mais do que se vê à superfície – e talvez esteja na hora de olharmos mais fundo para descobrirmos, juntos, um outro Algarve.
O Algarve é um destino turístico reconhecido mundialmente pelo sol, praias e gastronomia. Mas se perguntarmos a qualquer visitante, ou até residente, sobre o património cultural marítimo algarvio, muito provavelmente receberemos apenas um olhar intrigado.
Não é difícil perceber porquê. Quem vá além da exposição sobre as armações da pesca tradicional da sardinha ou do atum, quem mergulhe nas águas da região, conhece a realidade: mares frios, verdes, com pouca visibilidade, muita suspensão e escassa fauna marinha apelativa.
Até os naufrágios conhecidos são poucos, tanto que em Portimão tiveram de ser afundados artificialmente dois navios para criar algum interesse. E depois, o mar no Algarve, é mesmo mais banhos.
Mas a história do Algarve está repleta de naufrágios, certamente mais de três milhares ao longo de séculos, envolvendo embarcações provenientes de todo o mundo.
O Algarve sempre foi uma região-chave na navegação internacional, um ponto de passagem obrigatório junto ao estratégico cabo de São Vicente. No entanto, as histórias de como a região controlava o mar, dos navios que aqui aportaram ou naufragaram deixando milhares de vidas perdidas e tesouros ainda ocultos, são praticamente desconhecidas.
Felizmente, esta realidade está a começar a mudar, pelo menos no Barlavento Algarvio.
A Câmara Municipal de Lagos deu um passo pioneiro ao estabelecer um protocolo com o Instituto História, Territórios e Comunidades (HTC) da Universidade Nova de Lisboa.
O empenho do município, em especial do seu presidente e da arqueóloga Elena Morán, permitiu concluir recentemente uma extensa investigação, resultando num livro que conta a história detalhada de 643 embarcações e uma aeronave, perdidas na antiga jurisdição marítima de Lagos, que inclui os concelhos de Vila do Bispo, Aljezur, Portimão, Lagoa, Silves, Albufeira e, claro, Lagos.
Este trabalho representa um marco na história do património subaquático português. Não só porque disponibiliza uma base documental sólida para futuras investigações, como também oferece novas possibilidades para o turismo e a valorização cultural da região, lançando as bases para uma futura oferta turística centrada numa história marítima autêntica, diversificada e fascinante.
Mas não é só uma escada para o exterior: os crescentes conhecimentos sobre o património cultural subaquático no Algarve podem contribuir significativamente para uma maior coesão entre os algarvios, ao criar uma identidade comum assente na partilha de um património histórico-cultural até agora pouco explorado.
Os naufrágios são testemunhos poderosos de momentos que ligam diferentes localidades e gerações, revelando histórias de resiliência, solidariedade e interação com povos de todo o mundo.
Ao descobrirem estas histórias em conjunto, as comunidades algarvias poderão compreender melhor a importância estratégica da região no contexto global, percebendo que partilham muito mais do que um espaço geográfico.
Esta narrativa partilhada pode impulsionar um maior sentimento de orgulho e pertença regional, fortalecendo os laços comunitários e incentivando iniciativas conjuntas de preservação e valorização cultural.
Até porque o Barlavento algarvio tem os naufrágios documentados mais antigos de Portugal, datados de 966, ano em que uma frota omíada afundou dois navios vikings em Portimão.
Tem também episódios tão marcantes como o combate naval travado em 1476 entre franceses, portugueses, flamengos e genoveses, quando seis navios foram ao fundo e Cristóvão Colombo foi salvo por embarcações locais e desembarcado em Lagos, mudando para sempre a história mundial.
E, por fim, guarda histórias profundamente humanas como a de João Salsinha, o pescador que em 1903 preferiu sofrer uma tempestade no mar, para poder regressar rapidamente ao filho, que tinha doente em Lagos, acabando por desaparecer no oceano para sempre.
Lagos e o Barlavento têm de tudo: Navios espanhóis com tesouros; hidroaviões da Segunda Guerra Mundial; navios de linha da Royal Navy, de 58 canhões, tragados inteiros pelo mar, juntamente com os seus 400 homens; náufragos de um vapor, obrigados a enterrar metade dos seus companheiros afogados à luz da lanterna de uma bicicleta; um general espanhol rebelde que dá à costa em Lagos numa humilde canoa de pesca e que é salvo às cavalitas de um francês, anos antes de vir a ser presidente do governo espanhol; navios-fantasma, que dão à costa, sem tripulação, sem explicações, apenas carregados de perguntas e de mistério.
E, no meio de todas estas histórias, uma população algarvia que vive do mar, que por vezes morre no mar, que acolhe quem o mar faz dar à costa e que salva – muitas vezes, pagando com a sua própria vida – as vidas de desconhecidos e estrangeiros que o mar quer comer.
Mas que também tem, por vezes, a esperteza de ir roubar ao mar aquilo que o mar traz, seja o ouro e a prata da Nova Espanha, seja a carga de tecidos já molhados, que tira com cupidez do bojo de um qualquer casco arrojado à costa, seja o arrematar e o desmantelar dos destroços das centenas de navios que se perderam no Barlavento, numa atividade empresarial de salvados e de mergulho profissional – como o da casa Parreira Cruz, de Lagos – da qual praticamente tudo desconhecemos.
Entretanto, os naufrágios do Sotavento algarvio permanecem ainda por estudar. Não se conhecem os detalhes históricos dos inúmeros naufrágios que certamente ocorreram na costa entre Faro e Vila Real de Santo António. Mas esta realidade também pode mudar, desde que exista interesse e iniciativa semelhantes às demonstradas pelo município de Lagos.
Até porque conhecer a história destes naufrágios é mais do que acumular factos e datas; é compreender profundamente como o Algarve interagiu com o mundo ao longo dos séculos. É uma forma única de enriquecer o turismo com narrativas autênticas e emocionantes, indo além dos tradicionais vestígios romanos ou da história medieval centrada em Silves e no domínio muçulmano.
Estas histórias não são apenas fragmentos do passado; são potenciais motores económicos e culturais para o futuro do Algarve. O exemplo de Lagos é claro: preservar e divulgar o património subaquático pode trazer benefícios sustentáveis ao turismo, ao mesmo tempo que fortalece a identidade cultural da região.
Porque o passado, quando resgatado com rigor e partilhado com orgulho, tem a força de unir comunidades, valorizar o território e inspirar novos caminhos. O mar guarda muito mais do que se vê à superfície – e talvez esteja na hora de olharmos mais fundo para descobrirmos, juntos, um outro Algarve.
Alexandre Monteiro | Arqueólogo náutico e subaquático
Investigador do HTC-CFE da Universidade Nova de Lisboa e membro da Academia de Marinha. É pós-graduado em Mergulho Científico, instrutor de mergulho e mergulhador profissional, tendo projetos de arqueologia com as autarquias de Alcácer do Sal, Lagos e Esposende e, no estrangeiro, nos Emirados Árabes Unidos e na Austrália. É consultor da UNESCO, do governo de Cabo Verde e da Missão de Combate aos Crimes contra o Património Cultural da OSCE. É, há 25 anos, o criador das bases de dados relativos a naufrágios históricos de Portugal Continental, Açores e Madeira, bem como de Omã e Cabo Verde.
Artigo publicado no âmbito dos 50 anos do jornal barlavento.