Antónia Correia, CEO do KIPT CoLAB, acredita que o futuro do turismo passa pela qualificação dos profissionais, retenção de talento, combate ao preconceito e também por projetos sustentáveis e inovadores.
Formar melhor para valorizar mais. Uma ideia que está no centro da revolução silenciosa que o KIPT CoLAB – Laboratório Colaborativo para a Inovação no Turismo, estrutura financiada pelo Programa Regional ALGARVE 2030 no âmbito da contratação de recursos altamente qualificados, quer pôr em marcha no país, a partir do Algarve.
Em Loulé, nas instalações do NERA, Antónia Correia lidera uma equipa «ao serviço das empresas», que desenvolve projetos inovadores para atrair talento, combater os preconceitos que ainda persistem associados à indústria, e também, preparar os diferentes players para os desafios da competitividade sustentável.
Na calha está a criação da Academia Digital Skill Up, com lançamento previso para março de 2026. Será uma plataforma online de microcredenciais, desenhada para quem já está no ativo, com formações acessíveis e certificadas por instituições de ensino superior e outros parceiros, como a academia do Turismo de Portugal.
«O nosso grande objetivo é ser uma montra daquilo que melhor existe de formação em turismo, em Portugal», resume a economista e professora universitária, que vê na qualificação uma oportunidade concreta de progresso individual e coletivo.
Neste projeto, «o nosso papel é garantir que a estrutura e a logística estão montadas para que as pessoas possam aprender, integradas no seu contexto de trabalho», explica. O plano é que as 40 horas de formação obrigatória por lei deixem de ser um mero requisito legal e passem a ser uma oportunidade.
«Queremos que estas formações sejam sempre de alto nível para que os profissionais possam, de facto, progredir na carreira e que não fiquem estagnados naquilo que são as suas atividades diárias e rotineiras», acrescenta.
Sobre a oferta formativa, Antónia Correia revela que está a ser preparada segundo as necessidades identificadas pelas empresas, até porque «ainda há um conjunto de trabalhadores que nasceu na hotelaria e que precisa desta capacitação», acrescenta.
A academia Digital Skill Up terá abrangência nacional e está a ser bem aceite pelos 20 associados do KIPT CoLAB. «Acho, neste momento, que todas as empresas da área do turismo têm a consciência absoluta que a sua sustentabilidade e a consolidação dos seus negócios dependem de uma boa estrutura» de recursos humanos.
Um sector à procura de respeito
Apesar de ser o principal motor da economia do Algarve e um dos pilares do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, a percepção pública das profissões deste sector continua marcada pelo estigma. Não admira, portanto, que falte mão de obra, reconhece Antónia Correia.
«É um problema quase estrutural que já se devia ter antecipado. Porquê? Temos uma população envelhecida e um fluxo de saída dos nossos jovens para outros destinos à procura de crescimento profissional e oportunidades. Portanto, há necessidade de capacitar e atrair talentos», considera.
A primeira linha de ação é a mudança de mentalidades. «É a mais importante de todas. Deixarmos de confundir o trabalho hoteleiro com a subserviência. Embora sendo certo que quem faz cursos na área do turismo tem emprego garantido, a verdade é que a procura de formação superior na área do turismo tem estado em queda livre. O serviço é muitas vezes confundido com uma atividade de menos valor e de menos prestígio social. E, portanto, as pessoas fogem».
Para perceber a extensão do desdouro, o KIPT CoLAB fez um inquérito junto das escolas básicas da região. «Fomos perguntar aos alunos se se viam a trabalhar em turismo. A maior parte respondeu que nunca! Mostra bem que o preconceito está enraizado nas mentes desde o berço», diz.
Uma herança cultural que, segundo a investigadora, remonta à forma como o país descurou a educação, até muito tarde: «em 1974, grande parte da população não tinha qualquer formação. Ainda havia uma grande taxa de analfabetismo e fomos criando uma conotação muito associada à humildade, à pobreza e à falta de recursos. Agora, estamos a tentar contrariar, mas não se contraria aquilo que se começou no século passado, de um dia para o outro».
Mas, quem vem de fora para trabalhar no turismo em território nacional, não partilha desta perspectiva. «Fizemos uma caracterização dos imigrantes do sector e demos-lhe voz. Conseguimos perceber que Portugal já consegue atrair imigrantes da Europa para virem cá aprender com os melhores, porque, de facto, somos considerados um caso de excelência na área da hotelaria e do turismo. Vêm pelo networking e para aprender. E, portanto, somos um case study de referência».
Para ajudar a «mudar a narrativa», Correia aponta o exemplo da AHRESP – Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal, «que está a mudar as nomenclaturas» de algumas funções, por exemplo «trocando o termo empregado de mesa para assistente de sala, de forma a tirar a comunicação negativa».
Imigração sim, mas não podemos perder a identidade
Num sector que se confronta com um dilema, a CEO do KIPT CoLAB não tem dúvidas acerca da necessidade da imigração. «No imediato, não há outra opção. É uma forma rápida de resolvermos um problema circunstancial da atualidade», afirma.
O Turismo de Portugal está a trabalhar nas questões da inclusão, através do Programa «Integrar para o Turismo», de forma a «que os imigrantes possam aprender a nossa cultura».
A médio e longo prazo, contudo, «têm de ser os portugueses a assegurar estas funções. Caso isso não aconteça, vamos perder um bocadinho a nossa autenticidade, o nosso sorriso, a nossa forma de estar, de aprender, de servir e de falar com os outros, que são também algumas das nossas bandeiras» diferenciadoras. «É fundamental que se recuperem os nossos quadros. Precisamos que os nossos jovens venham trabalhar para um sector crucial para a economia portuguesa. Sem isso, dificilmente conseguimos».
Remunerações, meritocracia e lideranças tóxicas
Em setembro, o KIPT CoLAB vai apresentar um estudo sobre remunerações, mas a responsável adianta algumas das conclusões. «A verdade é que a taxa de remuneração bruta mensal em turismo aumentou 8% de 2023 para 2024». Ou seja, «enquanto as remunerações no resto da economia aumentaram 6%, nota-se um esforço grande do sector. No final de contas, com os impostos, significa um aumento de mais de 10%», estima.
«Agora, em Portugal paga-se mal, ponto final», admite. «Temos remunerações muito mais baixas do que em qualquer outro país europeu e isso é algo que está inato à economia. Não é apenas no turismo», esclarece. No entanto, e esta é outra das grandes conclusões do estudo, «a progressão na carreira em turismo é muito mais rápida do que em qualquer outro sector de atividade».
Por exemplo, na administração pública, «a progressão pressupõe formação ao longo da carreira. No turismo, faz-se pela capacitação. Há muitos exemplos de pessoas que começaram na receção e que hoje são diretores de hotel e até administradores de cadeias hoteleiras. É uma progressão por mérito, não pela capacidade de formação», compara.
Além disso, o dinheiro, per si, não resolve tudo. A chamada demissão silenciosa (quiet quitting) no sector, também foi alvo de investigação do KIPT CoLAB. Concluiu-se que as políticas de bem-estar e as boas-práticas de gestão de equipas são dimensões críticas.
«Porque é que as pessoas deixam de se interessar pela sua profissão? Curiosamente, e apesar de continuarmos a insistir muito na questão das remunerações, esse não é o principal motivo. É a carga laboral e o ambiente, às vezes, menos saudável, que pode existir dentro das estruturas. E, portanto, é importante começarmos a trabalhar o clima organizacional, para que seja menos tóxico», releva Antónia Correia. Aliás, intervir ao nível das chefias e dos gestores também está nos planos do laboratório colaborativo.
Erasmus para o Turismo
Um outro fator a considerar, segundo a investigadora, é a diversidade de motivações dos profissionais. Um estudo recente, financiado pelo Programa Operacional Algarve 2020, concluiu que os estudantes de turismo e hotelaria valorizam aspetos desta indústria, como a possibilidade de viajar e a ausência de monotonia.
«Talvez esteja na altura de se criar um Erasmus para o Turismo. Um programa de mobilidade entre unidades hoteleiras que permita aos jovens trabalhar em diferentes contextos geográficos. É um dos projetos que queremos desenvolver no curto prazo». Apesar de algumas cadeias hoteleiras já terem iniciativas parecidas, não estão ligadas entre si.
SPA do futuro quer ligar bem-estar ao ecossistema regional
Entre as várias candidaturas ao Programa Regional Algarve 2030, destaca-se a do projeto SPA do futuro. Junta todos os laboratórios colaborativos da região — KIPT, ABC, S2AQUA e GREEN. O objetivo é desenvolver um novo conceito de SPA mais sustentável, mais tecnológico e mais integrado com os recursos endógenos do território algarvio.
A proposta, que estará pronta até ao final de 2026, inclui medidas para a descarbonização, eficiência energética, economia circular e uso de energias renováveis, articulando-se com a Estratégia Regional de Especialização Inteligente (EREI ALGARVE 2030).
A visão futura dos Spas vai além da componente ambiental. Envolve avanços tecnológicos e práticas holísticas, como realidade virtual, robótica, inteligência artificial e até dietas personalizadas com base em análises genéticas.
Está ainda prevista uma forte componente de valorização dos produtos endógenos. «Queremos criar sinergias com o que é nosso — nos cosméticos, nos tratamentos, na forma como promovemos toda a experiência», refere.
Mais do que reinventar os Spas existentes, diz Antónia Correia, pretende-se criar uma rede articulada, inspirada no modelo dos campos de golfe do Algarve.
«O jogador de golfe tem o seu green favorito, mas gosta de experimentar os outros que há na região. Queremos permitir que as pessoas possam vivenciar experiências diferentes em cada um».
Turismo «empurra» todos os outros sectores
Antónia Correia vê com bons olhos o futuro da atividade turística. «Sim. É o único sector que toca em tudo. Ventila impactos sociais e económicos em todos os outros sectores de atividade. Quando cresce, é uma oportunidade para alavancar toda a economia. Agora, é preciso saibam conseguir absorver estes impactos diretos e indiretos, induzidos, que recebem para crescerem com ele», afirma.
A investigadora acredita que a estratégia da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Algarve tem vindo a «promover uma economia em que todos os sectores de atividade funcionem em rede e se potenciam uns aos outros».
Questionada sobre uma eventual quebra nesta época alta, a CEO do KIPT CoLAB explica que «estamos numa fase de consolidação. Houve um crescimento, ao nível dos fluxos, na ordem dos 6%. O crescimento das receitas foi na ordem dos 20%. O que é bom».
E justifica: «Significa que estamos a apostar mais na qualidade. Temos turistas com maior poder de compra e menos turismo de massas. É sinónimo de que não estamos a entrar na clivagem do overtourism. Se há menos fluxos, logo, há menos taxas de ocupação. Essas queixas têm a ver com a escala e com as dimensões que os hotéis têm implementadas».
O KIPT CoLAB, que assinala quatro anos de atividade no dia 17 de julho, posiciona-se como uma estrutura descentralizadora com ambição nacional.
«Estamos no Sul, mas queremos ter impacto no país inteiro. A missão dos laboratórios colaborativos é colocar a investigação ao serviço da comunidade. Juntar conhecimento, academias e empresas para construir bem-estar social», conclui.
«Cool Jobs»: o que pensam os profissionais de turismo?
O KIPT CoLAB, estrutura financiada pelos fundos europeus geridos no Algarve, enquanto laboratório colaborativo de produção, partilha e análise de conhecimento aplicado ao turismo, tem vindo a afirmar-se como infraestrutura de inteligência turística ao serviço do desenvolvimento regional, promovendo iniciativas como o BARTURS – Barómetro do Turismo, a publicação de estudos aplicados e a realização de eventos técnicos e científicos.
O recém-apresentado estudo «Cool Jobs no Turismo & Hospitalidade», desenvolvido pelo KIPT CoLAB, procurou perceber o que sentem os profissionais de turismo e hospitalidade em várias regiões do mundo, com base na análise de mais de 3.100 comentários comentários deixados na plataforma Reddit, onde se reúnem testemunhos anónimos de trabalhadores de diferentes sectores.
Segundo Antónia Correia, CEO do KIPT CoLAB, o objetivo foi compreender, numa perspectiva global, o que pensam os profissionais sobre as suas carreiras e como vivem o seu quotidiano laboral. A análise revelou que, na Europa, os comentários são sobretudo positivos. A estabilidade, a percepção de prestígio associada a cargos de gestão chefia e a rapidez na progressão na carreira explicam esse sentimento de satisfação.
Na América e na Oceania, os sentimentos expressos são menos favoráveis. Por razões culturais e estruturais, denota-se cansaço, exaustão com os turnos e frustração com a imprevisibilidade. Antónia Correia destaca que «o trabalho em turismo e hotelaria não tem controlo de qualidade. Ou seja, é um processo cocriativo. Estou a fazer a minha tarefa na frente do cliente. Se o cliente participa na tarefa comigo, consigo dar-lhe um bom serviço. Se não há empatia, as coisas não vão correr tão bem». Por isso, há um sentimento mais negativo do que na Europa.
Em contraste, na Ásia e em África, a percepção tende a ser positiva, embora os comentários sejam mais escassos, devido a fatores culturais que desincentivam a exposição pública. Nestes contextos laborais, a cultura de serviço está mais enraizada e o reconhecimento das funções está mais alinhado com os valores sociais e a cultura locais.
De forma transversal, o estudo mostra que as profissões em turismo são consideradas «cool» quando os trabalhadores sentem que o seu contributo é valorizado, quando existe reconhecimento profissional por parte das chefias, espaço para a autonomia e a criatividade. A relação direta com os clientes, a variedade das tarefas e a ausência de monotonia são apontadas como fatores de motivação, por vezes, mais fortes até do que a remuneração.
Porém, a investigadora salienta que a resiliência é indispensável. «Trabalhar em turismo exige um grande controlo emocional. Um chef de cozinha, por exemplo, vive numa adrenalina constante. É uma profissão apaixonante, mas muita coisa pode correr mal» de um momento para o outro. Por fim, o gosto pelo contacto humano e pelas relações interpessoais é outro aspeto que marca praticamente todas as funções no sector.
O estudo foi apresentado no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, no dia 1 de julho de 2025.